Nunca Serei Bom Rapaz

Residência Criatica a no Lugar Comum,  Fábrica de Pólvora de Barcarena | Outubro/Novembro de 2006
Apresentação do Laboratório no Lugar Comum, Fábrica de Pólvora de Barcarena | Novembro de 2006
Estreia Pavilhão 27 do Hospital Júlio de Matos | 1 a 16 de Dezembro de 2006 e 10 a 13 de 2007
Desenvolvido em colaboração, com direcção Joana Craveiro e interpretação de Gonçalo Alegria e Simon Frankel

Começámos por trabalhar em torno de A Desobediência Civil e A Defesa de John Brown, ambos de Henry David Thoreau (de quem já antes havíamos adaptado Walden), e terminámos embrenhados nas cartas de prisão de George Jackson, um livro que andava connosco há vários anos, e que tomou de assalto o nosso espectáculo.

Em 1965, de uma prisão em San Quentin, nos Estados Unidos da América, George Jackson, um recluso negro preso por ter roubado 70 dólares de um posto de gasolina, um crime que nunca foi provado, e que no entanto levou a que fosse condenado a prisão perpétua, escrevia ao seu pai, “Quando obtiver aquilo de que preciso para trabalhar, nada poderá impedir-me de ir para casa. É aí que hei-de investir o meu dinheiro, os meus recursos, e talentos. O meu trabalho desenvolver­se­á onde for apreciado. Os meus impostos irão para uma ordem e sistema de governo que, em compensação, me protegerá a mim e aos meus interesses. Nunca, enquanto me chamar um homem, pactuarei com a tirania. Há algumas coisas que para mim significam mais que a vida.” Ressoando com uma indignação semelhante à de Henry David Thoreau, mas ainda mais poderosa, invocando um ódio profundo a todos os que o oprimem, aos que não são da sua raça e o perseguem, aos que o aprisionaram injustamente, aos que nunca o ensinaram a pensar, aos que nunca lhe deram sequer uma hipótese, Jackson escreve cartas inflamadas, por vezes ternas por vezes brutais, à sua mãe, ao seu pai, à sua advogada, a Angela Davis, entre outros. Este conjunto de cartas ficou conhecido como Soledad Brother: As Cartas de Prisão de George Jackson.

Este trabalho desenvolveu-se em duas fases: uma primeira, durante o mês de Outubro, no Lugar Comum – Centro de Experimentação Artística, na Fábrica da Pólvora,em Barcarena. Aíprocurámos a solidão do recluso, desenvolvemos sistemas de acções para manter a sanidade, a partir do estudo das acções descritas por George Jackson nas suas cartas. Procurámos ainda uma implicação profunda do actor no trabalho, convocando para tal excertos do seu diário pessoal de trabalho, bem como de memórias pessoais, que se entrecruzavam com as de Jackson. Por esta altura, as obras de Henry David Thoreau eram já só uma inspiração, e foram progressivamente desaparecendo os excertos das mesmas do esboço final do trabalho. A relação com a música/ ruído/ som, nessa primeira fase, foi também particular, uma vez que não foi desenvolvida música original, mas antes utilizadas faixas sonoras de outros autores. Todavia, a relação entre músico e actor era a que se encontra ainda hoje: um diálogo constante, momento a momento entre ambos, e que varia consoante as circunstâncias, as características, os dias, as sensações. Neste sentido, consideramos que temos dois intérpretes/ criadores em cena, e não somente um. Esta constatação é reforçada pelo facto de Gonçalo Alegria interpretar três monólogos neste espectáculo, escritos por Joana Craveiro.

O espectáculo que aqui se apresenta é como uma depuração da primeira fase, laboratorial, no Lugar-Comum. Agora no Pavilhão 27, procurámos, em primeiro lugar, um espaço adequado à instalação das premissas do trabalho, e, depois, uma abordagem das cartas de Jackson não cronológica, e sim temática. Quisemos trabalhar três pontos: sobreviver, resistir e aprender. A estes acrescentámos ainda a experiência do amor, encarcerado é certo, mas um amor que redime e liberta, tal como expresso nas cartas que Jackson enviou a Angela Davis, Joan e Z. Também incluímos uma carta para a sua advogada, Fay.
São estes os seguintes interlocutores de Jackson na selecção de cartas que trabalhámos:

Robert Lester Jackson: seu pai.
Georgia Bea: sua mãe.
Jonathan Jackson (Jon): seu irmão mais novo.
Joan: amiga e amante.
Z. : amiga e amante.
Angela Y. Davis: activista dos direitos civis negros e membro do partido comunista, amiga e amante.
Fay Stender: advogada de George Jackson.
Greg: editor de George Jackson.

Com este espectáculo e no decurso do processo, procurámos ainda prosseguir a linha de pesquisa acerca do trabalho do actor, que vimos perseguindo desde a nossa fundação: o actor consciente e responsável, criador de uma dramaturgia cénica, autónomo, na posse de todas as ferramentas e informações, na posse de um discurso sobre o trabalho. Um actor em diálogo constante, momento a momento, dia a dia, com a realidade, com cada espectáculo a cada dia, com o músico, consigo próprio. A ideologia subjacente à nossa actividade teatral é sempre uma ideologias de transformação, de não resignação. Desafiamos as circunstâncias, tornamo-las nossas aliadas, aproveitamos o acaso, o erro e os restos. Trabalhamos com o que temos e desejamos sempre mais, desejamos não parar. Envolvemos a equipa nesta forma de trabalhar, de pensar. E estimulamos que todos se sintam parte criadora do trabalho.

O Teatro do Vestido acredita num teatro que não se divorcia da realidade, antes olha para ela de frente sem medo e com uma vontade indomável de a transformar. A injustiça prevalece; a guerra prevalece; a discriminação prevalece. Enquanto prevalecer o estado de sítio, o teatro, tal como o entendemos e praticamos, será uma arma de construção, de denúncia, de transformação. É por isso que esta é para nós uma peça política.
George Jackson, apesar de preso, de condenado à morte, demonstra em muitos momentos das suas cartas, uma esperança inabalável, que queremos com este espectáculo saudar.

“Sem o frio e a deslocação do Inverno não haveria o calor e o esplendor da Primavera. A calamidade endureceu-me o espírito e fê-lo de aço. O poder para o povo.
George”

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